É DO TALHO?
por Licínia Quitério
É do talho? Não, minha senhora, é engano. Mas eu queria ligar para o talho. Pois, mas enganou-se no número. Passe bem.
É do talho? Não, não é do talho, a senhora ligou de novo para o número errado.
Do outro lado, a mesma voz de mulher que me pareceu ser de idade avançada. Oitenta e cinco, segundo me disse minutos depois. Ela lamenta-se, ai, mas o que é que eu fiz, mas não é do talho, oh desculpe, a senhora donde é. Fiquei logo a saber que iria haver conversa, porque eu estava bem disposta e porque me agradou o tom autêntico da mulher, tão diferente, mas tão diferente, das chamadas que recebemos das meninas que falam como máquinas ou das máquinas que falam como meninas. Disse que era de Mafra e aí a mulher ficou muito contente, afinal morávamos bem perto, e começou a contar a vida, num tom alegre, com risadas pelo meio, nada de tristezas. E a senhora conheceu este, e aquela, e aquilo, ah que contente que estou de falar com a senhora, e falou, falou e riu e falou. Só não consegui que me confessava quando deu o primeiro beijo ao que é seu marido há setenta anos. Riu-se muito, disse que naquele tempo não havia beijos, mas riu-se mais e lá foi deixando escapar que tinha sido só mais tarde, ficando eu sem saber o que queria dizer mais tarde.
Fiquei também contente por falar com a senhora V.A. que tinha muito tempo para conversar e muitas histórias para contar a quem a quis ouvir por uns minutos.
Ainda bem que não ligou para o talho. Foi um prazer.
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